19 de fev. de 2010



Até onde vai a Arte?
Artista Português, João Bugalho descreve o poder da arte na busca de memórias vividas por portadores de Alzheimer e idosos participantes do "Faça Memórias".


No Projeto Faça Memórias no MuBE as obras de arte expostas são usadas como ferramentas de busca de memórias escondidas pelo tempo.
Memórias afetivas tornam-se peça chave para um diálogo entre o grupo que, em comum possuem a vontade de reviver o que o tempo insiste em apagar.
Durante a exposição de João Filipe Bugalho, talentoso artista português, o grupo teve o prazer de servir de "monitor" ao próprio artista que através de sua arte não apenas embelezou as paredes do museu como engrandeceu diversos corações que batiam mais forte ao reviver memórias através de sua obra.

Vale ler o relato escrito pelo próprio artista sobre sua experiência com o Projeto Faça Memórias no MuBE!

Arte e Memória
por João Filipe Bugalho


Foi nessa aula para os alunos de pintura do MuBE que conheci a Cristiane Pomeranz. Disse-me que não era aluna de pintura mas sim monitora de uma organização – arte inclusão – de apoio a pessoas da terceira idade e, entre estas, especialmente a doentes de Alzheimer. Abriu-se aqui a porta para um dia seguinte extremamente rico e de certo modo, impressionante. Sobretudo seguramente muito gratificante. A Cristiane, monitora especializada em artes reabilitadoras, informou-me que viria no dia seguinte da parte da manhã com idosos e da parte da tarde, com um grupo de sete ou oito doentes de Alzheimer. Perguntei-lhe se poderia assistir. Ficou encantada e que só não se tinha atrevido a pedir-me. Aguardei pois, com expectativa, o dia seguinte.
De manhã lá fui ao encontro com as pessoas idosas. Foi curioso, sobretudo pela vontade que mostravam de querer aprender uma coisa nova. Interpretaram os quadros, viram neles coisas que eu nunca imaginei, pediram-me que dissesse alguns dos poemas a propósito. Pintaram a partir das minhas imagens. Estiveram sempre alegres e muito activas. Senti-me contente quando a Cristiane me contou que uma das senhoras, aparentando já mais de oitenta anos, não saía mais de casa e aí se mantinha, sozinha, fazendo pouco mais do que chorar. Com as saídas neste grupo retomou a alegria, convivia de bom grado e andava satisfeita. Naquele dia, porque lhe disseram que iria conviver com o “artista” tomou isso a sério e empapoilou-se toda! Vinha muito arranjada, bem penteada, com seus brincos e colares e fatinho de ver a Deus…Com a alegria estampada no rosto! Impressionaram-me muito as interpretações que fizeram e isso fez-me pensar como nunca tinha sentido antes no papel da nossa pintura perante os outros e nas emoções que podemos despertar as quais seguramente, pouco têm a ver com o que nos levou a pintar. Mas evocam memórias, sensações que são pertença do espectador e para as quais a nossa pintura só serviu de catalizador para as desencantar, redescobrir, reconstruir no subconsciente. Foi uma boa experiência.
Verdadeiramente impressionante para mim porém, foi a tarde com os doentes de Alzheimer. Má doença esta, a do amigo alemão…Uma das senhoras teria perto de cinquenta anos, nem mesmo isso!
Percebi então porque utilizam a pintura para a reabilitação ou, pelo menos, para que não haja agravamento na situação destes doentes. Como eles esquecem as palavras e as ideias mas não esquecem as imagens, o objectivo é levá-los a ver os quadros e a pedir-lhes que os interpretem. Nos dias subsequentes voltam e procuram que se relembrem das interpretações que antes fizeram e recuperem os raciocínios e as interpretações feitas nas visitas anteriores. É fascinante, mas também comovente, acompanhá-los no esforço para procurar caminho no labirinto das ideias turvas ou dos pensamentos esquecidos. É doloroso presenciar a memória a claudicar mas é uma alegria, uma alegria que contagia todo o grupo, quando a lembrança reage.
Contou-me a monitora que uma senhora, na véspera, havia visto no quadro “Entre vós minhas árvores me firmo”, um carreiro entre as árvores que dava saída para uma clareira enorme que haveria ao fundo, com um céu azul luminoso resplandecente.
Aproximámo-nos do quadro, eu junto e de costas para ele, o que me permitia ver todos aqueles rostos fazendo exercícios, procurando pistas entre as memórias. Foi quando a Cristiane perguntou: “Então D. Júlia, se lembra do que viu ontem neste quadro?”. Ela olhou, todos olhavam, sorriam os que se recordavam, perscrutando os lentos movimentos da memória de Dona Júlia. Esta olhou o quadro, olhou-me, voltou a percorrer o quadro todo com o olhar e, enquanto uma grossa lágrima lhe corria pela face sussurou: “Não me lembro…” Ficou um silêncio enorme e longo. Todos se mantiveram em atenta expectativa, olhando para Dona Júlia como que para encorajá-la, estimulá-la. Ajudavam-na a orientar-se nos labirintos da sua memória recente. Ficou uma espera atenta, ansiosa. De repente o rosto de Dona Júlia iluminou-se, brilharam-lhe os olhos, levantou-se-lhe um sorriso. “Espera, olha bem, ali, lá no fundo, um caminho, há uma abertura, uma saída para uma clareira muito bonita, cheia de Sol, com um céu azul lindo!”
Foi a emoção, uma quase comoção colectiva e Dona Júlia parecia até ter rejuvenescido. Uma das senhoras, toda de preto, baixinha, vinha acompanhada por um neto muito carinhoso com ela, dedicado, entregue à missão de lhe dar o braço e a acompanhar nesta aventura. A Cristiane perguntou-lhe: “E a Si, este quadro lembra-lhe alguma coisa?” Então a senhora voltou-se para mim visivelmente satisfeita, com um ar de quem sempre encarou a vida pelo lado mais feliz e disse-me: “Sabe, a minha maior alegria, a melhor parte da minha vida, foi ter tido nove filhos. Os primeiro oito todos meninos, a última uma “minina”, a mãe desse aqui, meu neto “quirido”. E sabe o que me lembra o seu quadro? Quando eu saía a passear com eles e os meus “minino” si juntavam ao pé da árvore e faziam, cruzando os braços e segurando os pulsos com o punho, uma escadinha pra eu subi!”. E o grupo riu como se fossem crianças, a preparar-se para subir também.
Gostaram muito da tela “Trago-vos rosas brancas, rosas pálidas…” e pediram-me que lesse a oração a Nossa Senhora. Dei autógrafos, trocámos abraços, fomos colectivamente felizes. Foi bom. Saí eufórico. Pela rua apetecia-me dançar, pular, sei lá o quê. Os cheiros húmidos das plantas enchiam-me de alegria até ao fundo dos pulmões.
Lágrimas de alegria bailavam-me cá dentro, o mundo parecia-me leve. Era quase lusco-fusco e havia mistério no ar. Até parecia que a presença de meu irmão se pressentia ali.
Era um mundo muito à sua medida, ao nível dos seus momentos de euforia. Não era eu nem a minha pintura, era a transmutação da sua poesia. Tinha valido tanto a pena fazer aquela exposição! Tinham-se ultrapassado já, simplesmente, os factos. Era outra a realidade ali. Vieram-me à memória a minha Mãe, o ar fresco da quinta, os poemas de meu Pai, uma amálgama de emoções, de cheiros, de sentimentos, numa espécie de filme súbito que me ligava à juventude. Era um daqueles momentos em que sentimos com grande clareza o mistério da existência da qual retemos apenas a súmula essencial e nos encontramos cara a cara com a estranheza do nosso eu, do nosso inexplicável percurso.

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